segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Bufo & Spallanzani - Primeira Parte

"Ela sentou-se para assistir a uma exibição de slides, encostou as costas retas no espaldar da cadeira e cruzou as pernas deixando os joelhos aparecerem. Usava um vestido de seda e o tecido fino delineava a forma atraente de suas coxas. Tive vontade de me ajoelhar a seus pés mas achei melhor uma abordagem convencional. Os slides eram todos quadros de Chagall. 'Você gosta de Chagall?', perguntei na primeira oportunidade. Ela respondeu que sim. 'Essa gente toda voando', eu disse e ela respondeu que Chagall era um artista que acreditava acima de tudo no amor. Na mão esquerda dela, no dedo anelar, havia um anel de brilhantes. Devia ter uns trinta anos de idade e uns cinco de casada, que é quando as mulheres começam a perceber que o casamento é uma coisa opressiva, doentia mesmo, iníqua e estiolante; além das privações sexuais que passam a sofrer, pois os maridos já cansaram delas. Uma mulher dessas é presa fácil, o sonho romântico acabou, restou a desilusão, o tédio, a perturbação moral, a vulnerabilidade. Então aparece um libertino como eu e seduz a pobre mulher. Ali estava uma pessoa que acreditava no amor. 'Que nul ne meure qu'il n'ait aimé', eu disse. O francês pode ser uma língua morta, mas é linda e funciona muito bem com as burguesas. 'Infelizmente o mundo não é como os poetas querem', disse ela. Convidei-a para jantar, ela hesitou e acabou aceitando almoçar comigo. Era a primeira vez que ia a um restaurante com um homem que não fosse o marido.

O marido era um homem de muitas posses e prestígio social. O casamento deles, como disse, chegara àquele ponto em que a rotina criara o tédio e o tédio a apatia e a apatia a ansiedade, depois a incompreensão, a aversão, e por aí afora. Ela tentou reverter esse processo viajando com o marido à Índia, à China, cada vez mais longe, como se os problemas não o acompanhassem. Fez o marido comprar fazenda perto (a outra que possuíam, era no Mato Grosso), deu mamadeira para os cabritos umas três vezes e depois não achou mais graça naquilo. Tentou ter filhos, mas era estéril: dedicou-se à beneficência, entrando para a diretoria de uma associação destinada a recuperar prostitutas e mendigos.

No primeiro dia em que almoçamos juntos ela praticamente nada comeu. Bebeu uma taça de vinho. falamos de livros e ela disse que não gostava de literatura brasileira e admitiu cândidamente que não havia lido nenhum dos meus livros o que destrói a sua teoria, minha querida, de que ela estava deslumbrada pelo escritor. perguntei qual era o autor da sua preferência e ela citou o Moravia. Lera La Vita Interiore e L'amante Infelice, no original, fez questão de dizer. Ter mencionado Moravia deu-me a oportunidade que esperava de falar de sexo. Disse a ela que eu encarava o sexo, na vida e na literatura, da mesma maneira que o Moravia, isto é, algo que não deve ser pervertido pela metáfora, mesmo porque nada há que se lhe assemelhe ou lhe seja análogo. Desenvolvi este raciocínio astuto que desembocou naturalmente no campo das considerações de ordem pessoal. Os velhos e sovados temas da liberdade sexual, da paixão sem possessão, do hedonismo, do direito ao prazer foram espertamente abordados por mim. Eram cinco horas da tarde e continuávamos no restaurante, ambos falando muito, sem parar, creio que houve um único segundo de silêncio entre nós. Lembro-me que, em certo momento, ela me perguntou qual a diferença entre o sexo praticado por duas pessoas que se amam e o realizado por duas pessoas que apenas se desejam. Respondi: 'confiança, as pessoas que se amam sabem que podem confiar no outro'. Para uma mulher casada, que comtempla pela primeira vez a possibilidade de ter uma aventura amorosa, não existe frase mais instigante e tranquilizadora."

Trecho do livro Bufo & Spallanzani de Rubem Fonseca

Nenhum comentário: