sábado, 30 de janeiro de 2010

O Beijo

Ele estava ali, dançando entretido, quando percebeu que a guria olhava em sua direção.
Ninguém costumava flertar com ele, então virou-se, deu de ombros (provavelmente ela estava olhando pra outra pessoa) e continuou dançando timidamente, o copo de plástico com cerveja quente na mão.
Mas a menina não lhe saiu mais da cabeça. Um tempo depois, deu uma olhada, assim, meio de rabo de olho, tentando não ser percebido e constatou que a guria ainda olhava pra ele. Deu uma conferida à sua volta, procurando outros caras pra quem ela pudesse estar olhando, mas só havia um casal de gays beijando-se encostados na parede, um grupo de meninas dançando numa rodinha e uns cabeludos bem esquisitos batendo cabeça.
Bem. Se ela não estivesse olhando pra ele, só poderia estar olhando pra algum dos cabeludos e, ao pensar nisso, julgou-se mais atraente que seus concorrentes e começou a cogitar seriamente a hipótese de que os olhares eram mesmo pra ele.

Tão rápido quando lhe permitia a timidez, foi até o bar, comprou outra cerveja e aproximou-se da menina. Sua posição do bar em relação à menina era mais favorável do que o lugar onde estava anteriormente. Ali, ela não poderia vê-lo chegar até que estivesse bem próximo dela. No caso de ganhar um fora de cara, bastava dar meia-volta, fingir que ia no banheiro e seus amigos dificilmente perceberiam que ele acabara de entrar pelo cano. Pior do que tomar um fora é tomar um fora tendo seus amigos como testemunha.

Ele chegou, tocou no ombro da guria, ela virou em sua direção já sorrindo, ele lhe ofereceu cerveja, ela aceitou e começaram a conversar. Logo estavam dançando timidamente e foi da garota a providência de aproximar-se cada vez mais até que seu corpo tocasse completamente o dele.
Usando o álibi de que a pista de dança a essas alturas tocava The Cure e estava lotada, ele tratou de puxá-la para ainda mais perto de si e, quando as luzes baixaram um pouco, corajosamente abaixou seu rosto até a altura do rosto da menina e perguntou-lhe ao pé do ouvido "posso te beijar?".

A menina - furiosa - se afastou, pediu licença, resmungou qualquer coisa sobre ir ao banheiro e nunca mais apareceu.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Feijoada

Ela envolveu meu pescoço com aqueles bracinhos miúdos, as perninhas em volta da minha cintura e seu rosto úmido comprimido entre meu rosto e minha mão. Ali, tentando não fazer barulho, chorando silenciosamente como uma pessoa adulta faria, ela me apertava, enrolava os dedinhos nos meus cabelos e soluçava dolorosamente enquanto tentava entender o que eu acabara de dizer.
Ela queria que eu fizesse feijoada (um de seus pratos favoritos) no almoço do dia seguinte. Eu disse que não poderia fazer.

Depois de passar um mês inteiro fora de casa, trabalhando em São Paulo, descobri que minha esposa vinha tendo um caso com um de meus amigos. Então voltei pra colocar um fim naquele casamento que vinha degringolando e sendo levado e arrastado porcamente já há um bom tempo.
Quando apareci, minha enteada fez cara de manha e implorou pra matar aula e passar o dia comigo.
Contrariando todas as regras que eu vinha tentando ensinar, consenti com a falta e passeamos o dia todo. Tomamos sorvete, compramos livros, comemos salgadinho e no fim do dia, pouco antes de sua mãe chegar do trabalho ela me disse que estava com saudades de comer feijoada.

Eu disse que não poderia fazer. Nem amanhã, nem depois de amanhã. Expliquei que eu e sua mãe estávamos nos separando. Que eu estava indo embora. Que essas coisas acontecem. Que a vida dos adultos funciona assim. Que ela entenderia melhor quando fosse mais velha. Que apesar disso, eu a amava.
Ela tentou entender. De verdade. Mas imagino o quão difícil devia ser.
Então ela só me agarrou com aqueles bracinhos, enroscando os dedinhos no meu cabelo, chorando baixinho e me apertando pra eu não ir embora.

Ela só queria comer feijoada.