sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Patê


Você vive uma vida inteira, conhece todo tipo de gente e acredita que sabe o que é o amor. Acredita que já amou e foi amado, que já entregou tudo de si, que já fez todos os sacrifícios, que seria capaz de mover mundos pela pessoa amada, que estaria disposto até – quem sabe – a dar a vida por esse amor.
Mas toda essa crença cai por terra quando você tem um filho.

Só quando você tem um filho, quando cumpre com sua função biológica é que é possível saber o que realmente significa o amor.

Só quando você sente um medo e um arrepio extremos dentro de si, simplesmente por escutar à notícia de um estupro, de uma guerra iminente do outro lado do mundo ou de algum novo vírus na África.
Só quando você abdica da sua rotina sem o menor pesar, quando abandona aqueles velhos hábitos aos quais vinha se apegando a vida toda e o faz sem remorso, sem dúvidas e com um sorriso no rosto. Só então é que você realmente sabe o que é amor.

Quando tudo de si e quando tudo em si torna-se algo em função daquela outra vida. Quando cada plano, cada decisão sua, mesmo as mais egoístas, passam a considerar o bem-estar dela.
Quando você vigia seu sono e fica contando o tempo da respiração vendo o peito arfando lentamente. E quando você sente aquele desespero bobo porque de repente a respiração demorou um pouquinho mais a vir.
Quando você fica encantado com cada nova descoberta dela como se fosse uma nova descoberta sua. Porque mesmo que sinta já ter visto ou descoberto tudo é encantador ver tudo soar tão novo e cheio de possibilidades pra quem você ama.

Você realmente sabe o que é amor, quando a primeira palavra minimamente compreensível é pronunciada e você se sente mais pleno, mais realizado e completo do que quando pulou de pára-quedas ou ganhou aquela promoção no trabalho.
Quando os primeiros passos são dados. Quando a bicicleta não cai sem as rodinhas.
Quando qualquer tédio, cansaço ou mau-humor causados pela dureza do dia dissipam-se imediatamente só de ver aquele pequeno ser que você ama sentado no chão, num canto do quarto com os brinquedos na mão, imitando absorto e distraído as vozes de um desenho animado da TV.
Quando sente em si todo o peso e toda a desgraça da impotência por vê-lo chorando de dor de ouvidos sem que você possa fazer nada além de ministrar o remédio e esperar do lado, com o maxilar rígido e as mão grudadas até que faça efeito.
Quando ele aprende aquele palavrão na escolinha e você acha engraçado mas finge estar extremamente bravo, ofendido e decepcionado, porque é preciso dar o exemplo.

Você realmente sabe o que é o amor, quando essa pessoinha te pega em alguma contradição e você faz um tremendo malabarismo psicológico pra conseguir um contra-argumento convincente, mas fica morrendo de orgulho por ele ter tido a esperteza de perceber a brecha no seu discurso.
Quando ele diz algo que te ofende, que te atinge em cheio a moral ou a estima mas é impossível sequer cogitar sentir raiva.

Quando você deixa de comprar aquele patê importado que adora porque a grana tá curta e você prometeu um patinete se ele passasse de ano.
Quando você deixa de comprar o patê porque ele quer o bonequinho dos sucrilhos.
Quando você deixa de comprar o patê porque vai ter excursão ao Parque da Xuxa.

Quando você nem sente mais vontade de comer aquele patê.


Este post comemora quatro anos do Escola de Canalhas e é dedicado à Julia, que foi minha enteada, a filha dos meus sonhos e a coisa mais linda que já aconteceu na minha vida, pelo período em que estive casado com a mãe dela.
E também é dedicado à Lara, minha primeira sobrinha.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

"Obrigado!"


Outro dia, por acaso, acabei escutando sem querer aquela música antiga da qual você começou a gostar a pouco tempo e senti mágoa por saber que nunca mais ia escutar as canções sessentistas que você gosta.
Um tempo depois vi uma menina na rua, usando uma camiseta preta e puída de banda e fiquei triste por lembrar do jeitinho autêntico mas de gosto duvidoso como você se vestia.
Me convidaram pra ir naquele café do centro da cidade que você adorava e lembrei dos bate-papos, dos seus planos pueris pro futuro e foi doloroso constatar que eu nunca teria outra chance de sentir ternura e empolgação pela sua juventude.

Outro dia vi o flyer de uma casa qualquer da Augusta e foi desolador pensar que já estivemos juntos e que bebemos juntos e dançamos juntos na maioria delas. Foi ainda mais desolador porque a moça na foto do flyer tinha os peitões grandes e meio caídos como os seus e me senti vazio pensando que meu corpo jamais voltaria a te preencher.
Eu lembrei das noites de loucura, das drogas, dos beijos, das transas nos banheiros, dos encontros insólitos com pessoas estranhas, da tatuagem que fizemos com nossos nomes, dos porres homéricos, dos dias amanhecendo através da janela e dos pães de queijo matinais.

E eu fiquei triste. E a tristeza virou depressão.
E na depressão eu pensei em todas as brigas, em todas as babaquices que dissemos um pro outro. No quanto eu me senti sozinho estando a seu lado, porque você era nova demais pra perceber o tipo de carinho que eu precisava. E pensei que talvez eu tivesse sido velho demais pra perceber o tipo de carinho que você precisava.
Lembrei das cenas de ciúmes, algumas engraçadas, outras ridículas, outras deprimentes. Pensei em todas as coisas que você me escondia, nas pequenas mentiras que eu deixei passar esperando que um dia você percebesse que eu era maior que aquilo, que não havia motivo pra mentir. Pensei em todas as mágoas que a sua superficialidade sentimental me provocaram e que você nunca saberia porque era inapta demais pra enxergar. E pensei em todas as vezes que eu pude ter te vilipendiado sem perceber porque estava focado demais nos detalhes, nas coisas miúdas, nas filosofias e significados ocultos que talvez nem existissem.
Eu me senti traído por ter dedicado tanto tempo e carinho, por ter investido tanto capital emocional e ainda assim não ter tido forças pra fazer nada quando a relação começou a ir à falência de forma tão boba e infantil.
E apesar de todo o desencontro, de todo erro, senti medo de jamais voltar a encontrar quem me correspondesse tão bem na cama ou quem fosse capaz de intrigar tanto e atiçar tanto minha curiosidade e meus ímpetos paternos.

Eu fiquei triste. Por muito tempo.
Até finalmente perceber que não havia motivos pra ficar triste. Que apesar de tudo o que ficou faltando, a gente tentou com o que tinha. A gente fez o que era possível fazer, dadas as circunstâncias e as limitações de cada um. Que o amor acabou mas que, antes disso ele existiu e foi forte, foi intenso, foi extremo. E se esgotou. 
Rápido como tudo o que é intenso. Mas foi ótimo justamente por ter sido assim. Justamente por não ter tido barreiras. Por não ter sido em vão.
Foi só então que eu parei de sentir tristeza e comecei a sentir gratidão. Por tudo o que foi. Mas principalmente por ter sido. Justamente por esse amor ter existido, por eu ter tido a chance de vive-lo e por poder contar essa história.
Senti alegria pelas boas e más lembranças. Por ter tido coragem de me meter numa relação que desde o início dava indícios de ser problemática. Por ter tido esperança de superar os problemas. Por ter usado todo o conhecimento que eu tinha pra resolver esses problemas. Ainda que não tenha sido suficiente.

E então eu sorri. Pleno, satisfeito e realizado. 
Sorri torcendo pra que você possa ser feliz.
Sorri sabendo que eu também vou voltar a ser feliz. Ou que vou morrer tentando. 
Mas mais do que isso, sorri te dizendo “Obrigado!” por dentro.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O fantasma


Quando você divide sua vida com alguém, quando divide seu teto, seus dias, quando você divide sua cama e depois – por qualquer motivo e de qualquer forma – aquilo acaba, é meio como morrer.

De repente você está sozinho de novo. De repente você volta a ser um indivíduo e deixa de ser a entidade de um casal.

E de repente você não sabe mais quais de seus pensamentos são de fato uma opinião sua e quais são reflexos da outra pessoa.
Você escuta sua música favorita daquela banda que te acompanha há anos, mas depois de ter tocado tantas vezes essa mesma música para a outra pessoa, tornou-se impossível desassociar uma da outra.
Você vê nas prateleiras da locadora os filmes que ela adorava e você detestava e sente um vazio áspero, estranho, por não ter mais a chance de implicar com aqueles filmes.
Você vai ao mercado e quando chega em casa, tira da sacola espantado, atônito e triste, aquele item que a outra pessoa sempre te pedia pra comprar. E mesmo que você não goste, agora vai ter de consumir antes que vença o prazo de validade. Só pra não desperdiçar dinheiro.
Você, no meio de uma conversa boba com os amigos percebe-se o maior entendedor de um assunto que não lhe diz nada, que não tem nada a ver com as coisas que você é e gosta, porque aprendeu tudo a respeito daquilo ouvindo ela falar.
Você vai às festas que a outra pessoa gostava de freqüentar e que você acabou acostumando-se a gostar por causa dela e – lá dentro – questiona-se porque afinal está ali e não em outro lugar qualquer.

Mas é o costume. O hábito adquirido. Como o cavalo ensinado que, uma vez arreado faz automaticamente o mesmo caminho. Como o fantasma viciado. Como alguém que – de tão acostumado com a vida – simplesmente esquece que já morreu.