sábado, 25 de fevereiro de 2012

Mudanças



Eu lembro que quando tinha uns 10 ou 11 anos, os pêlos do meu corpo começaram a crescer anunciando que a infância tinha ido embora e a adolescência vinha tomar o lugar dela. Fiquei estarrecido. Aquilo significava o fim (não imediato, tudo bem, mas ainda assim, o fim) de uma porção de coisas que eu gostava e pelas quais tinha apego. Era meu corpo apontando a eminência de responsabilidades com as quais eu não queria arcar. O término de uma época que tinha me trazido grandes felicidades. A interrupção de regalias, de benefícios, de um estilo de vida do qual eu definitivamente não tinha disposição pra abrir mão. É uma besteira, eu sei. Mas me vi profundamente entristecido, chateado e até desesperado com aquilo tudo. Então, numa tentativa boba de reverter a ação do tempo e dos hormônios, de enganar qualquer que fosse a entidade, a fada que leva embora os melhores anos da vida das pessoas que crescem, resolvi raspar todos os pêlos que já não estivessem ali há dois anos atrás.

E raspei. E eles cresceram de novo. E a adolescência veio e mudou minha voz, deformou completamente meu corpo, me deu uma infinidade de espinhas odiosas e me encheu de uma feiúra que nunca tinha sido minha. Apesar disso, foram ótimos anos.

Mas eu ainda não tinha aprendido a lição e três anos atrás passei por coisa parecida de novo.
Meu pai, meus tios e um dos meus irmãos mais velhos são carecas e durante a adolescência um dos dois medos que me habitavam o cérebro constantemente era o de ser careca também. O segundo medo era ter que prestar o serviço militar obrigatório, mas por esse consegui passar sem quiproquós.

Assim, tão logo minha mãe deixou de ter qualquer poder de decisão sobre mim, deixei meu cabelo crescer e cultivei o visual rebelde que tinha sido minha utopia desde a infância. Me agradava cuidar das madeixas, dormir com os cabelos sob o rosto e ter liberdade de mudar o visual a qualquer hora, bastando amarrar dessa ou daquela forma, acrescentar uns acessórios, etc. Eu finalmente tinha o visual que sempre quisera ter e isso era uma brincadeira agradabilíssima.
Mas então, como não poderia deixar de ser, a ação do tempo, da genética e dos hormônios veio mais uma vez bulir com quem estava quieto e meus cabelos começaram a cair. Aos tufos.
O auge foi numa noite, durante o banho, em que depois de passar o creme condicionador e esfregar a cabeça, minha mão voltou com mechas inteiras dos meus cabelos entre os dedos. Lembro de ter me desesperado, de ter caído de joelhos e chorado que nem um bebezote. (É claro que aquele desespero todo não veio só por causa da eminência da calvície, havia naquela época toda uma série de coisas desagradáveis acontecendo e o cabelo foi só a gota d'água que fez transbordar o copo, mas isso agora não vem ao caso).
Procurei uma dermatologista, comecei a me medicar e meus cabelos acabaram ficando mais ou menos como eram antes.

E também procurei uma psicóloga, claro.


Mas o que realmente tem importância nisso tudo é o seguinte: várias vezes a gente acaba tendo medo de mudar. Medo de sair da zona de conforto, de começar de novo. Medo de ter que reaprender a gostar de si, a gostar da nova cidade, da nova casa, dos novos amigos, das novas namoradas, de novas situações, sejam elas quais forem. A gente simplesmente tem medo, mas é preciso entender que tudo muda. Que tudo se perde. Mas que se perde menos quando se entende que outras coisas virão substituir as perdidas. Talvez essas coisas não tenham o mesmo peso, a mesma importância, a mesma beleza ou as mesmas qualidades das que foram perdidas, mas é isso o que resta e assim sendo, resta fazer o melhor possível com o que sobra.
À medida em que o tempo passa - e principalmente depois dos 25 anos - nem seu corpo continua produzindo a mesma quantidade (nem qualidade) de células que produzia antes. Tudo se esgota aos poucos. Há de se fazer o melhor com o que se tem. Até que tudo acabe. Até que acabe a vida. Porque essa perda - a da vida - não há remédio, não há decisão, não há ferramenta que conserte. Não há ação que reverta.

É uma merda? É! Mas paciência. Já diz a máxima que "a única coisa imutável da vida é a inexorabilidade da mudança." Então, amém.

P.S. Hoje em dia lido bem melhor com as mudanças. Mas minha mãe não. E cada vez que vou visitá-la ela se entristece ao ver em mim uma nova tatuagem, piercing, etc e diz que estou destruindo meu corpo. Eu argumento que todos os dias, milhões de pessoas ganham marcas, cicatrizes ou perdem um órgão ou um membro. Pelo menos minhas tattoos vieram por escolha minha, não pelo acaso. É preciso aprender a lidar com isso também.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Sentir-se um homem


Desde os 15 anos eu queria sair de casa. Me irritava e entristecia ser acordado de manhã pela minha mãe e ver que a roupa já estava escolhida e dobrada em cima da cama. Que meu café da manhã já estava pronto e fumegante na mesa da cozinha.
Eu entendia o carinho contido naquele gesto, mas aquele carinho me tolhia. Me tirava o que na época já era a coisa mais importante pra pessoinha que eu era: a auto-suficiência.

Olhando pra essas coisas hoje, não consigo imaginar de onde tais conceitos vieram. Não sei precisar como é que essas idéias ancoraram na minha psique e na minha índole. A impressão que tenho é a de que sempre estiveram por ali. Porque já estavam antes e permaneceram depois.

Aos 19 anos eu já estava noivo e aos 20, casado e vivendo com minha própria família.

Uma noite, depois do trabalho, aluguei um filminho pra ver em casa a dois. Eu estava no sofá deitado, com a cabeça da minha mulher apoiada no peito quando a filha dela acordou e, fazendo manha quis se aninhar conosco. Acomodei-a no outro lado do peito e quando achei que poderia enfim voltar minha atenção pro filme, o gato, provavelmente enciumado, resolveu que não lhe era mais suficiente ficar no tapete e deitou-se enrolado sobre a minha barriga.

Foi a primeira vez na vida em que me senti um homem. O macho alfa da minha matilha, provedor dos meus, sendo capaz de dar abrigo e carinho praqueles à minha volta. Por mais careta, por mais retrógrado, por mais romântico, por mais bobo que isso possa ser (ou parecer), naquele momento percebi que eu tinha chegado onde ansiava. Senti felicidade. Satisfação. Tudo era como eu queria. Tudo era como deveria ser. Eu finalmente me sentia dono de mim. Senhor das minhas decisões e senhor da família que eu tinha erigido.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Obsessão


Quando você venera alguém. Quando sente uma necessidade que transcende o físico. Quando te parece que falta um membro, um pedaço do peito. Quando a pessoa a quem se ama não está e predomina a sensação de que te arrancaram as entranhas.

Quando se está sozinho e parece que o gosto da própria boca é amargo. Quando tragar o ar te parece que você está tentando respirar água. Quando a falta é maior do que a sua casa.

Quando você sente que a sua existência está vinculada à presença do outro. Quando a voz do outro te alimenta. Quando o corpo do outro te alicerça. Quando tudo carece de qualquer propósito ou sentido se não naquela companhia.

Quando as horas se arrastam e a cabeça pesa. Quando o sentimento de posse te faz querer cometer um assassinato. Quando os ciúmes te fazem doer os ossos. Quando o amor te liquefaz.

Quando você se pune. Se permite mazelar. Quando você abre mão do próprio orgulho e escuta calado o que te ofende. Porque, por mais que algumas palavras doam, a simples idéia de não escutar qualquer palavra dói ainda mais.

Quando o desejo te faz ficar bêbado. Quando as mãos tremem de raiva e luxúria. Quando os sentidos deturpam a realidade e parece que tudo é etéreo, insosso, insípido e disforme.

Quando você perde o controle. Quando seus joelhos se prostram no chão e você se descobre um escravo.

Quando você idolatra alguém. Quando você anseia. Quando quer que seu corpo se funda ao da outra pessoa até que sua individualidade seja completamente sublimada.

Quando o que você sente deixa de se chamar "amor" e passa a ser chamado de "obsessão".