segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Pelos Olhos Dela


Ela tinha um jeito como quem sente medo de tudo. Uma postura introspectiva, excessivamente reservada, retraída, miúda. Como uma vítima, como um ratinho que se esconde pra sobreviver.
Não que ela se fizesse de coitada. Jamais. Eu nunca a ouvira reclamar da vida ou colocar-se na condição de ré. Era sua postura. Continha algo daquele tipo de gente que tomou tanta surra da vida que acabou tornando-se arredia, inalcançável, comedida.
Ela tinha dor nos olhos. Mas não era aquela dor pesada do velho. Da pessoa vivida que já perdeu toda a fé, todo o gosto pela humanidade. Era uma dor de quem apanhou mas tem esperança na redenção. Era como o guri que corre em direção a praia no filme do Truffaut. Era como um passarinho que tem a asa quebrada mas que sabe que aquilo é condição passageira.

Então eu me apaixonei. Eu que era só confiança, só arrogância, só otimismo. Me apaixonei e jurei que mostraria praquela guria que ela estava errada. Que não havia motivo pra ter tanto medo, tanta desconfiança, tanta dor. Eu jurei pra mim que daria a ela um punhado da minha extrospecção. Que lhe mostraria o lado bom das coisas. Que lhe traria pro brightside da vida.

É claro que eu era novo demais, incauto demais, metido à besta demais. Eu achava que entedia como as coisas funcionavam, achava que não havia chances de aquela garotinha miúda, infante e tímida conhecer do mundo mais detalhes que eu.
Mas é claro que eu era novo demais e estava completamente equivocado.


A guria me mostrou o mundo por seu ponto de vista. Mostrou de onde vinha tanta dor, tanto medo, tanta ameaça. E eu entendi. Vi o tamanho do meu erro. Vi como tudo podia ser tão cinza, cruel, mesquinho e ameaçador quanto ela via. Vi que ela tinha razão.

E desde então tudo o que eu vejo, vejo pelos olhos dela.

domingo, 16 de outubro de 2011

Ali do lado


Ela se esqueceu. Por um momento breve. Num lapso fortuito achou que ele estaria ali. Mas não estava mais, claro.
O sofá de couro preto não estava mais enrugado no lugar em que ele gostava de sentar. O cheiro dele no travesseiro já tinha se dissipado. Sua cópia das chaves estava em cima da cômoda. Seu frasco de perfume já tinha sido levado embora. Suas revistas favoritas não empilhavam-se mais na estante. Seus fios de cabelo não estavam mais no ralo do banheiro.

Mas por um momento ela se esqueceu e parecia ser possível mais uma vez escutar ele cantarolando enquanto tomava banho. Sentir o cheiro do cigarro na área de serviço. O roçar dos dedos gelados dele em seu calcanhar durante a madrugada.

Não havia mais qualquer sinal dele pela casa. Era como se nunca tivesse estado lá. Como se nunca tivesse existido. Tudo dele havia sido apagado, levado embora ou substituído havia muito tempo. Mas na memória, às vezes parecia que ele estava ali. No cômodo ao lado. De onde jamais deveria ter saído.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Relacionamento Maduro

Situação bastante comum. Um relacionamento longo recém terminado. Sem brigas, sem discussão Apenas terminado. Provavelmente porque uma das partes não ama, não se identifica mais com a outra.

Num relacionamento maduro, mesmo que alguém esteja ferido, mesmo que se sinta abandonado, não há porque não continuar amigos. Alguns almoços, algumas trocas de favores e telefonemas.
Num desses telefonemas ela contava sobre os incidentes do trabalho, sobre problemas com os quais se confrontara, sobre a falta de dinheiro, etc.
Ela falava e ele ouvia atento, concordando com algumas coisas, discordando de outras, oferecendo pequenos conselhos. Sendo maduro.

Mas de repente, na distração da conversa, no ritmo do bate-papo, em meio às amenidades, totalmente sem querer ele diz, não o nome dela mas o apelido carinhoso pelo qual se tratavam antes do fim do namoro.
Leva-se alguns segundos pra perceber o que aconteceu.
Silêncio.
Os dois não sabem o que dizer, não sabem o que justificar. É um equívoco comum mas totalmente desconcertante.
De repente é como se não tivesse acabado. Como se a relação prosseguisse, como se os laços amorosos ainda gozassem de ternura, como se aquele respeito mútuo, aquele afeto pudesse reacender a chama, retroceder o tempo pra antes das coisas se tornarem cansativas, pra quando se podia e queria compartilhar mais que amenidades cotidianas.

Mas não se pode, é claro, e todo mundo sabe disso. Sabe. Mas não aceita. Maturidade não conversa com amor. Racionalidade não tem nada a ver com os sentimentos.


Não existe um relacionamento maduro quando é um relacionamento de amor. E não existe um fim isento de sentimentos numa relação dessa natureza. O que existe é a vontade maquiada de continuar. De ainda ter alguma coisa daquela pessoa, de ter a chance de manter algo vivo. De manter alguma proximidade. De saciar - ainda que superficialmente - a necessidade da correspondência afetiva do outro.

E então, numa hora dessas, o que resta é reatar os laços de forma efetiva e completa ou - se uma das partes acredita mesmo que não haja possibilidades de que isso aconteça - não telefonar nunca mais.

O único jeito de terminar um relacionamento amoroso de forma realmente madura, é desatar todos os laços. Sem ternura, sem amenidades, sem amizades depois.

Lie to Me

Havíamos tido uma grande discussão. Como várias que vieram antes e várias que vieram depois. Mas nessa em específico eu estava tremendamente irritado e ofendido com a tentativa que ela tinha feito de mentir pra mim.
Nem era uma grande mentira. Mas eu não tolero, é meu calcanhar de Aquiles. A simples idéia de ter alguém que possa querer me passar pra trás, me fazer de bobo, ludibriar ou omitir algum fato importante me tira completamente do sério. Desde criança.

Até por conta disso - e usando o pretexto da minha pretensão de me formar em psicologia - é que na adolescência me entupi de literatura e reportagens discorrendo e estudando sobre a mentira.

Eu sabia identificar uma mentira. E não gostava.

Então, naquela discussão, durante minha cólera eu bradei: "Não tenta mentir pra mim. Não tenta me enganar. Você não consegue. Pára de tentar competir e simplesmente seja franca comigo da próxima vez."
Embora nervosíssimo, eu não tinha qualquer intenção de ofendê-la. Queria convencê-la que a verdade era o melhor caminho. O único jeito de eu ser capaz de respeitá-la e conviver com ela. O único jeito daquela relação funcionar.
Mas ela era - lógico - tão orgulhosa quanto eu e tomou aquela frase como uma afronta, como um desafio. Se eu tinha sentenciado que ela não era capaz de me enganar, ela iria (desse dia em diante) fazer de tudo pra me mostrar que eu estava errado. O tipo de coisa que acontece amiúde em relacionamentos juvenis e doentios.

Num dos vários finais de semana que passávamos na minha casa, entrei de repente no quarto, vindo de qualquer lugar e a guria se assustou.
Ela estava usando meu computador e vi que - no susto - minimizou rapidamente uma janela qualquer.
Sorrindo, perguntei o que acontecia e ela respondeu que conversava com um amigo.
Pedi que abrisse o programa e me mostrasse a foto do amigo. Era alguém que eu não conhecia e, pelo modo como a janela estava disposta dava pra ver a foto do rapaz e uma resposta dela: "Que bom. Fico mais tranquila com isso."
Perguntei com o que ela "ficava mais tranquila" e a resposta foi uma história a respeito de um quiproquó qualquer envolvendo um mal entendido entre uma amiga sua e o rapaz da conversa. Ela explicou que estava intermediando a resolução do problema e que agora, finalmente, tudo se resolvera.

Mentira. De novo.

Insisti pra que dissesse a verdade e ela insistiu que a verdade era aquela.

Durante a semana, pedi pra que um amigo que entendia de informática me instalasse no computador um programa espião. Depois de uma semana do programa instalado, interceptei outra mensagem pro mesmo rapaz na qual ela contava que eu quase a tinha flagrado durante a conversa. O rapaz perguntou se tinha havido algum problema e ela explicou que não. Que tinha me inventado um desculpa qualquer e tudo tinha terminado bem.
Imprimi a mensagem, entreguei-lhe o papel, sentei a seu lado e pedi pra que - agora - me dissesse a verdade.
Assustada, a garota contou outra história. Disse que alguns meses antes, logo depois de uma briga nossa, ela tinha ido a um bar com a amiga. Que tinha encontrado este rapaz (um colega de longa data) e que tinha flertado com ele. Ela explicou que tomou um fora e que isso a tinha feito sentir muita vergonha. E concluiu dizendo que naquela conversa em que eu tinha pedido pra ver a foto do rapaz, ela estava justamente se desculpando por ter sido tão impetuosa e esclarecendo que a situação a havia constrangido.

Dessa vez era verdade.
Levantei-me agradecendo pela franqueza e avisei que, mesmo que essa história fosse verdadeira, a anterior tinha sido mentira e por isso eu gostaria que ela fosse embora e me esquecesse.
A menina chorou. Pediu perdão. Implorou pra ficar. Justificou que não soubera como agir, que sentira medo dos meus ciúmes, da minha represália e que por isso tinha mentido. Jurou amor. Jurou que isso não se repetiria e todo tipo de balela que é comum em situações como essa.

Não consenti - claro. Coloquei numa sacola algumas roupas dela que ficavam em casa e mandei-a embora.

(Semanas depois recebi-a de volta. Mas isso é outra história.)