segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Quando você estava dormindo

Eram quase três da manhã, eu tinha ficado no computador trabalhando num freela até o limite das minhas forças e ela já estava dormindo há umas boas horas.
Sentei na beirada da cama com cuidado pra não acordá-la e fiquei namorando seu rosto sereno, pacífico, incólume e alvo, repousado ali no seu travesseiro favorito.
Os cabelos finos e dourados espalhados sobre seu rosto, sua boca entreaberta e a respiração cândida, suave.
Lembrei das últimas discussões, dos absurdos que tínhamos falado um pro outro, das ofensas trocadas, das farpas atiradas, das verdades incovenientes.
Lembrei do "Sábado Dourado", da ocasião em que eu quis ir embora e ela não deixou, da noite em que ela me expulsou de casa, da noite em que a aceitei de volta - dessa vez - na minha casa. Lembrei da última noite em que havíamos feito amor.

Acariciei sua nuca suavemente pensando nas nossas discussões sobre dinheiro, de quando ela reclamou minha ausência dizendo que eu vinha trabalhando demais, de quando ela reclamou que eu vinha bebendo demais, de quando ela confessou pra irmã mais velha que não aguentava mais tanta bebedeira.
Pensei na noite em que enchi a cara de whisky e fui escondido pro puteiro, de quando ela foi escondido pro show do Pearl-Jam em São Paulo dizendo que ia visitar nossa amiga, lembrei de quando ela fez aquela tatuagem que eu tinha proibido que ela fizesse.

Então me curvei, beijei-lhe o pescoço perfumoso, brinquei com o lóbulo de sua orelha, acariciei seu queixo e lhe sussurrei ao pé do ouvido: "Eu te amo. Quando você está dormindo."

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Tédio

E chega um momento em que a mania dela de falar alto deixa de ser uma idiossincrasia charmosa.
As preferências musicais irritam. A mania de jogar a perna em cima do seu corpo quando dorme te tira o sono. Os cuidados que ela dispensa quando você está gripado te fazem sentir-se oprimido. Os lugares que ela prefere frequentar te entendiam e o tempero que ela usa no arroz te faz perder a fome.
Chega um dia e de repente você não gosta mais daquela pintinha do lado do lábio inferior. O perfume dela não te excita mais. A mão dela, suando agarrada à sua, incomoda. O cabelo dela parece demodé.

Chega uma hora em acaba a novidade. Acaba o fulgor. Cessa a paixão.
De repente a intimidade fica chata e te constrange ter alguém que saiba tanto a seu respeito.
De repente ficar até mais tarde no trabalho torna-se um passa-tempo. De repente o espaço parece sufocante.

Chega um momento em que tudo acaba.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Amor, um prato chique

Mesmo o velho mais vivido, mesmo o mais experiente, mesmo a pessoa mais desencanada, mais hedonista, mesmo o cara mais individualista, ninguém escapa.
Por mais que a pessoa se sinta bem resolvida, por mais que tenha a certeza do auto-conhecimento, por mais que haja confiança no próprio taco, todo mundo vira criança, todo mundo se comporta como adolescente quando o que está em jogo é o amor.

O amor te faz sentir-se mais vivo, traz o cheiro da novidade, a excitação das novas sensações mas também te arranca a paz, o apetite e te deixa vulnerável.

Eu sempre fui bastante racional, bastante razoável na medida do possível. Mas sempre acreditei que, quando se trata das coisas do coração, ninguém é culpado de nada, ninguém é responsável.
No meu ponto de vista, quando o amor chega (ou qualquer uma de suas variáveis, como a paixão, o amor platônico e a amizade colorida) a pessoa tem o direito de abdicar da culpa. De escolher se jogar e de aceitar arcar com as consequências. Amor rima com uma porção de coisas. Muitas delas não são exatamente agradáveis, mas faz parte do pacote, amor nunca vem sozinho.
Vem acompanhado pelo medo, vem acompanhado pela excitação, vem com os ciúmes, vem com o ímpeto, com a empáfia, com a inveja, com a luxúria, com o torpor, com a cegueira, com a paixão. Vem com notícias ruins.

A questão é que é demais pra um coração só. Romanticamente as pessoas desejam, esperam e até sonham com tudo isso. Na prática isso assusta. Afasta.

Nunca conheci quem soubesse lidar com o amor tendo em mente a entrega e descomplicação que a situação pede e merece.
Há um trecho no livro "A insustantável leveza do ser" que trata disso e fala a respeito de uma forma genial.
Diz que, pela natureza única de cada relação, é impossível saber de ante-mão como lidar com ela. Que cada relação é única, é a primeira e a última e por isso não dá pra ter uma experiência prévia na qual se basear pra buscar ter sucesso.

A questão é: pra quê lidar com isso? O amor é uma experiência pra se entregar. Pra se jogar de olhos fechados e esperar o impacto. Não é pra ser previsto. Não é pra buscar sucesso. Não é pra buscar auto-satisfação, completude, saciedade, companhia, nada!
O amor é só pra ser. É como um jantar chique e caro que vem lindamente montado num prato bonito. Você pega aqueles talheres de prata e destrói aquela obra de arte apetitosa. O amor, como a culinária, é uma arte que só pode ser apreciada com a destruição total daquilo que se aprecia.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Samba do Grande Amor

Tinha cá pra mim
Que agora sim
Eu vivia enfim
O grande amor
Mentira
Me atirei assim
De trampolim
Fui até o fim um amador
Passava um verão
A água e pão
Dava o meu quinhão
Pro grande amor
Mentira
Eu botava a mão
No fogo então
Com meu coração de fiador
Hoje eu tenho apenas
Uma pedra no meu peito
Exijo respeito
Não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira
Fui muito fiel
Comprei anel
Botei no papel
O grande amor
Mentira
Reservei hotel
Sarapatel
E lua de mel
Em Salvador
Fui rezar na Sé
Pra São José
Que eu levava fé
No grande amor
Mentira
Fiz promessa até
Pra Oxumaré
De subir a pé o Redentor
Hoje eu tenho apenas
Uma pedra no meu peito
Exijo respeito
Não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira

Composição: Chico Buarque de Hollanda

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Noites como esta

Em noites como esta eu me lembro dela.
Seu sorriso era um feixe radiante de luz. Sua voz era doce, frágil e dengosa, me pedindo um abraço, implorando o cafuné que eu lhe dava displicentemente.
Mesmo nos dias mais quentes do cerrado ela estava sempre fresca, sempre rescendendo a banho. A pele branca, frágil, leve.
Eu lhe contava do meu dia, reclamava dos problemas, descrevia minhas idéias mirabolantes, narrava as peripécias que tinha com minha namorada e ela me ouvia sorrindo, me olhando com os mesmos olhos de ternura que dispensava à sua gata cinza, de quem eu tinha um ciúme mortal.
Eu falava e ela me olhava, deitada a meu lado, com a cabeça apoiada nas mãos deixando eu brincar com seus seios.
Quando ela discordava, ariana que era, não mudava de opinião. Pedia que eu desistisse, dizia que eu nunca a convenceria.
Ela adorava filmes de kung-fu e detestava ficção científica.
Ela era duas semanas mais nova que eu e acreditávamos ser almas-gêmeas.
Compramos em sociedade nossos primeiros livros e sonhávamos com a biblioteca imensa que teríamos em casa.
Ela me dava presentes que eu odiava e eu lhe fazia macarronadas.
Eu espantava seus namorados e ela não tentava me impedir.
Nós assistíamos cinco filmes todos os sábados e no víamos todos os dias, nem que fosse por cinco minutos. Nunca faltava assunto.
De noite eu voltava pra casa e me deitava pra dormir imaginando-a do meu lado.

Nunca aconteceu.
A vida nos afastou. Eu nos afastei. Ela me afastou.
Mas em noites como esta, quando eu deito, imagino a carícia doce da melhor amiga que já tive. E me sinto grato por tê-la tido durante aqueles cincos anos da minha adolescência.

Só em noites como esta.