quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Diálogo 6

_Oi, tudobem?
_Tudo, e você? Como é que vai a esposa?
_Bem. Tou indo buscar na faculdade. E o bebê?
_Tá lindo!
_Nasceu parecido com você ou com o pai?
_Lembra aquele retrato que eu adorava, de quando você tinha um ano?
_Lembro.
_Pois então: é igualzinho!

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Carta de Suicídio

Folheando um álbum de fotos, de repente tive uma epifania.
Percebi subitamente, na carne, no peito, no fundo do esôfago o tempo que passou. Senti o peso de tudo o que eu não fiz, de tudo o que eu não fui, de tudo o que eu quis e não tive e, principalmente, de tudo o que eu quero e nunca vou ter.

Não senti arrependimento. Não senti que realizei menos do que deveria ou do que poderia. Sei que sou acima da média, sei que realizei coisas únicas, que não deixei nenhum minuto da minha vida até agora passar em vão. O que pesou, no entanto, foi a constatação de que tudo o que foi realizado, os lugares onde estive, as mulheres que conheci, as festas que frequentei, tudo, não passou de um subterfúgio pra ocupar a cabeça e abafar o que eu não sou porque não nasci pra ser o que desejava. O fantasma do que eu queria ter, do que eu deveria ser e Deus não permitiu me acompanhou esse tempo todo, disfarçado de conquista. Mas ele estava ali, o fantasma.

E então eu me apego de novo ao trabalho, me ocupo, faço o meu tempo passar o mais rápido possível, encho ele de coisas a fazer e de sonhos a realizar e busco esperança na crença de que talvez haja uma segunda chance. Uma segunda vida. Uma outra que talvez traga o que eu preciso pra matar a fome, pra aplacar essa ânsia, pra consumir esse desespero, essa decepção, essa sensação opressora de ter nascido errado. Essa noção de estar preso, de ter a alma enclausurada num corpo que não é dela, que a limita, que a comprime, que a atrofia e reduz a algo que é mundano e comezinho demais.

Esse invólucro é demasiado estreito, demasiado simples e demasiado feio. Limitado. Tosco. Raso. Bobo. Muito pouco pra quem anseia tanto.
Resta a espera. Resta, mais uma vez, fazer todo o possível pra não desperdiçar o que resta. Gastar cada milímetro da vida pra sorver todo o suco e saciar o quanto for possível. O que faltar, o que ainda ficar depois disso, o espaço vazio que sobrar vai ficar sobrando e paciência.

Fiz o melhor com o que me foi dado. Mesmo que o que tenha sido dado seja tão pouco. Jogamos com as cartas que temos. Pelo menos, arrependimentos não vão ficar.

Só frustração. Carpe Diem.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A vida é incrível

Você acorda e tenta de todas as formas se agarrar à ideia de que não é segunda-feira mas o despertador insiste que sim. Ele ganha a discussão mas você adia ao máximo possível a iniciativa de esfregar os olhos e levantar; já dizia o ditado: se não pode vencê-lo, pirraceie.

Com meia hora de atraso você se levanta cambaleante, escolhe as roupas que estão por cima, veste, prepara o café da manhã e coloca um disco legal pra tocar, pra ver se de repente isso o anima. Não anima, é claro. Puta disquinho chato!
O relógio te avisa que seu atraso já evoluiu pra quarenta minutos. Você engole rápido o café e sem querer ele escorre na camiseta. Então você troca de camiseta, mas não tinha mais nenhuma passada então se veste com aquela amarrotada mesmo. Pelo menos não está babada de café.

Os dentes são displicentemente escovados, o cabelo desmazeladamente penteado e enquanto espera o elevador você lembra que deixou em cima da escrivaninha aquele CD importante com o arquivo que você precisa pra apresentação. Volta, pega o CD, a chave engasga na fechadura e o elevador não te esperou.

A caminho do ponto de ônibus uns pingos grossos de água começam a cair mas é tarde demais pra voltar e pegar o guarda-chuva e, por algum motivo as pessoas não parar de olhar pra sua cara na rua.
Entrando no ônibus você vê seu reflexo no espelho e percebe que ficou uma mancha branca de pasta de dentes que vai do canto esquerdo da boca até o começo do queixo. Querendo enfiar a cabeça num buraco você esfrega o dedão no queixo pra limpar mas é claro que o ônibus inteiro já notou.

Você se senta no primeiro lugar que fica vago e quando finalmente relaxa, percebe que é um acento reservado e uma senhora velha e gorducha cheia de varizes azuis e imensas na panturrilha te olha como se você fosse o maior filha-da-puta do mundo. Você levanta, dá o lugar e resolve atravessar a catraca, mas acabaram os créditos do bilhete único e você esqueceu, assim como esqueceu que só tinha dois reais e dez na carteira. O cobrador te olha com cara feia mas te deixa passar. Todos os passageiros do ônibus te olham com cara feia.

A guria esquisitinha, sentada diante de você, se oferece pra segurar sua bolsa. Você responde que, "não tudo bem" ela deixa estar mas repara no logo estampado na bolsa e te pergunta se você estuda na faculdade tal. Você responde que já estudou, ela revela (sem que você pergunte, porque, na verdade não está minimamente interessado) que está cursando publicidade na mesma faculdade. Você se força a sorrir e diz que fez esse curso também.

Três anos depois, na sua festa de casamento você olha pro lindo rosto dela enquanto os dois cortam o bolo e os flashes das câmeras te cegam e se lembra daquele como sendo o dia mais lindo da sua vida.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O melhor dia da sua vida

Eles se conheceram numa festa. Um desses festivais de rock que começam de dia e vão até de madrugada.
Ela era de São Paulo mesmo, mas ele tinha vindo de Porto Alegre só pra ver o Iggy Pop.
Lá pelas tantas os amigos dele sumiram, ele viu aquela guria bonitinha olhando pra ele e foi lá bater um papo.
Com um sorrisinho tímido, mordendo os lábios e com os olhos meio baixos, ela corou quando ele a chamou de linda e sem saber o que dizer lhe ofereceu a cerveja. Ele aceitou. A cerveja estava quente. Ele deu um golinho pequeno, olhou pra ela bem fundo nos olhos verdes e grandes, passou os braços por detrás de seu pescoço e a beijou. O primeiro beijo foi tosco e superficial mas eles logo acertaram o passo e então beijaram-se longa e demoradamente. Um beijo quente, molhado, aconchegante e cheio de desejo. Mas com gosto de cerveja.
Ela sentiu a barba dele pinicar seus lábios. Ele sentiu o cheiro do shampoo herbal.
Depois conversaram sobre banalidades, as bandas mais legais, os livros que vinham lendo, problemas com o TCC, problemas com o vestibular, trocaram telefones, fizeram fotos juntos, ficaram de mãos dadas, ela provou o pedaço de pizza frio que ele comprou, uma amiga dela ofereceu o beque, na hora da chuva ele a cobriu com sua jaqueta de veludo, ela se aninhou em seu peito, beijou seu pescoço, mordeu seu ombro, ele fez um cafuné, acarinhou seus lábios, assoprou os pelinhos de sua nuca e ficou olhando eles se arrepiarem. Ela riu da piada, ele gostou do esmalte, ela mordeu sua orelha, ele fingiu que esbarrava sem querer nos peitos dela. Ela achou que tudo bem.

Na hora do show do Iggy eles estavam bem longe dali, num canto mais ou menos escondido, trocando beijos tórridos e esfregando-se com desespero. Querendo-se e tendo-se na medida do possível.

Às seis da manhã, o ônibus de excursão no qual ele tinha vindo estava preparando-se pra sair.
Eles se beijaram de novo. Ela olhou nos olhos dele pra guardar na cabeça exatamente aquela imagem: o sol amarelo, seus olhos claros, o cabelo despenteado e o sorriso bobo.
Ele disse: "Amo você."
Ela disse: "Eu te amo mais."

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Instinto

Sabe quando duas pessoas trocam olhares pela primeira vez e imediatamente surge uma fagulha elétrica? Foi assim que aconteceu com eles.
Quando os olhares se cruzaram, na cozinha da casa dela, quando um fitou por segundos o rosto do outro e os dois perceberam imediatamente o desejo recíproco, os rostos coraram. A garganta travou sutilmente e os dois desviaram os olhares um do outro tão rápido as sinapses cerebrais permitiam. Mas era tarde. O estrago estava feito. Ele percebeu que ela o desejara. Ela percebeu que ele a desejara. E o marido dela percebeu o desejo recíproco dos dois.
Aquela energia sexual tomou conta do cômodo, criou um silêncio temporário, um breve embaraçamento, um medo de que alguém mais percebesse e um desejo de que todos percebessem.
Ela se viu sendo agarrada por ele, jogada por sobre a mesa, suas roupas rasgadas, os convidados imóveis, em choque, vendo-a ceder ao desejo, entregando-se ao estranho no meio do público como num ritual celta.
Ele se imaginou levando-a pra um canto escondido, sussurrando indelicadezas em seu ouvido e beijando sua boca ardentemente, longe dos olhares do marido.
O marido ficou olhando a cena, que pra ele pareceu durar uma eternidade, um acontecimento em câmera lenta e especulou de si pra si que, se os dois fossem um pouquinho mais loucos, um pouquinho mais corajosos, se atracariam ali, na frente dele e de todos. Beijariam-se com furor e desespero fazendo cair os queixos dos presentes, mandariam as convenções à merda e consumariam o desejo sem se importar com a humilhação que lhe causariam. Imaginou o amigo abordando sua esposa no corredor da casa, quando todos estivessem bêbados e entretidos demais pra dar pela falta deles. Conjecturou se deveria verbalizar o que vira e deixar os dois com cara de tacho, humilhá-los publicamente e humilhar a si mesmo. Fantasiou qual seria sua postura, sua atitude de macho caso os dois se atracassem, caso os dois não conseguissem se conter e ele flagrasse. E das mil coisas que o marido pensou, das mil coisas que ela pensou, das mil coisas que ele pensou, aconteceu a mais óbvia. Ninguém era tão louco ou tão corajoso pra dar vasão ao instinto e, passado o silêncio constrangedor, alguém abriu uma garrafa, serviu os copos e o papo recomeçou como se nada tivesse acontecido.

John Lennon fazendo música eletrônica

Sábado à tarde. A luz dourada do sol entrava pela fresta da veneziana que estava meio aberta pra que o ar pudesse circular pelo quarto naquele verão da Moóca e meio fechada pra que os vizinhos do prédio em frente não pudessem ver o que eu vislumbrava. O corpo dela. Nu. Lânguido, fresco e lindo estendido de bruços ali na cama. A luz contornando o bumbunzinho arrebitado, as costas, a mandala tatuada na altura dos ombros e os pelinhos finos que desciam pela nuca perfumosa e delicada. A luz se derramava sobre ela, se jogava, se deitava em suas costas repousando sobre a pele. Descansando ali.
Apoiada pelos cotovelos ela gesticulava, ria sozinha, tirava os fios de cabelo que grudavam nos lábios e vez ou outra me olhava pra ver se eu ainda estava prestando atenção na conversa.

Eu não estava. Só lembro de concordar que se o John Lennon estivesse vivo até hoje certamente estaria fazendo música eletrônica.

domingo, 1 de novembro de 2009

Ligo ou não ligo?

Eu pego o telefone, busco o nome na agenda. Fico olhando pra telinha brilhante e pensando "ligo ou não ligo?". Decido que sim mas lembro que não tenho nenhum assunto pra começar. Muito pouco tinha sido dito na noite anterior e as únicas informações trocadas morreram ali mesmo, entre beijos angustiados com gosto de cerveja e nicotina. Pouco foi dito depois dos gemidos, pouco foi revelado por debaixo da pele. Só banalidades. Considerações sobre o tempo, engarrafamento, trabalhos etc. E nada disso serve pra começar uma conversa telefônica com uma desconhecida que você levou pra cama.
Culpa das convenções sociais. Seria bem mais simples esperar ela atender, dizer "oi" se identificar e lançar "estou superafim de mais uma sessão de sexo casual, você não?"
Mas não dá! É preciso buscar um assunto e esse assunto tem de ser suficientemente interessante pra entretê-la algum tempo e desviar a atenção para o fato de que você é o mais completo idiota. Se essa parte for bem sucedida é preciso talvez convidá-la pra jantar, buscá-la em casa, pagar o jantar e torcer pra que, em nenhum momento do jantar ou do caminho até o restaurante ela tenha suspeitado do tamanho de sua miserabilidade.
No caso (improvável) de ter obtido sucesso até aí, é chegado o momento pelo qual você suportou todas as mazelas e o receio de que ela desistisse no meio do caminho. Pra isso bastam dois minutos. Depois vem os próximos 28 minutos em que você reza pra se aguentar e torce pra que ela comece logo todos aqueles gemidos da noite anterior.

Suado, tremendo, apreensivo e me sentindo o mais mazelado dos seres humanos eu continuo olhando pra telinha brilhando e penso: "E então? Ligo ou não ligo?"